Ricardo Kotscho
Por mais que a gente não goste quando alguém quer “meter o dedo” na Amazônia, como reclamou o presidente Lula na quinta-feira, em solenidade de comemoração do Dia Mundial do Meio Ambiente, a verdade é que tem toda razão a revista britânica “The Economist” quando afirma que é quase impossível colocar regras na região.
Em sua edição desta semana, na reportagem “Bem-vindo à nossa selva que encolhe”, a revista mata a pau ao constatar que é muito difícil para o governo brasileiro controlar o desmatamento e a exploração da floresta amazônica, “já que não há controle sobre a propriedade de terras na região”.
Não tem controle mesmo - e dificilmente um dia terá. Digo isso com tristeza, depois de dezenas de viagens que fiz pela Amazônia para garimpar reportagens nos últimos quarenta anos. Lá é tudo muito longe e imenso demais para alguém sonhar em colocar ordem na floresta.
Dava para ver a olho nu, muito antes do monitoramento por satélite, os pastos avançando nas áreas desmatadas das terras de ninguém, aonde a lei ainda não chegou e o Estado é uma miragem distante para os donos das boiadas que se multiplicam em progressão geométrica.
Em outubro do ano passado, quando estive na região para fazer uma reportagem sobre a exportação de gado vivo em pé da Amazônia para o Líbano e a Venezuela, viajando em monumentais navios gaiola (edição nº 5 da revista “Brasileiros”), recolhi alguns dados alarmantes que mostram o como é o estouro da boiada derrubando a floresta:
• Em 1964, a Amazônia tinha um rebanho de cerca de um milhão de cabeças de gado e menos de 1% da área havia sido desmatada para a formação de pastos.
• Em apenas treze anos, entre 1990 e 2003, o rebanho amazônico passou de 26,6 milhões para 63 milhões de cabeças, um crescimento de 6,7% ao ano, dez vezes maior do que a média brasileira.
• Hoje, os pastos abrigam mais de 70 milhões de cabeças de gado, um terço de todo o rebanho bovino do país, que desde o ano passado é o maior exportador de carne do mundo. Como a Amazônia tem uma população de 23 milhões, isso dá a média de três bois por habitante.
• Para abrir os pastos, foram desmatados 16% da área da floresta, o que dá mais de 70 milhões de hectares, equivalente a Espanha e Portugal juntos ou superior à soma das áreas dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo.
• A Amazônia continua perdendo 24 mil quilômetros de mata nativa por ano, uma área equivalente ao Estado de Sergipe ou dois terços do território da Bélgica. Como 1% da floresta vira pasto todo ano, mantido o atual avanço do gado na região, em 2050, metade da floresta já terá sido derrubada para abrigar um curral de 285 milhões de cabeças de gado.
• A principal razão para este estouro da boiada é o baixo preço da terra ou a pura e simples invasão de áreas públicas, a popular grilagem. Sai mais barato derrubar árvores (R$ 200 a R$ 300 por hectare) do que recuperar solos de áreas já desmatadas e degradadas transformadas em juquira (R$ 700 a R$ 750 o hectare). À medida que os canaviais tomaram o lugar dos pastos na febre do etanol e a soja avançou pelo centro oeste, os pecuaristas foram subindo o Brasil e ocuparam a Amazônia em busca de novos espaços.
• Outro motivo para a expansão da pecuária foi a progressiva derrubada de barreiras sanitárias que dificultavam a venda de carne da região para o centro-sul do país e o exterior, em especial pela falta de controle da febre aftosa (a “Economist” errou neste ponto, ao afirmar em sua reportagem que o gado criado na Amazônia não pode ser exportado). Com a liberação da exportação, o Brasil mandou no ano passado mais de 500 mil cabeças de boi vivo para a Venezuela e o Líbano.
• Cercada de rios e de peixes por todos os lados, a população rural da Amazônia tem hoje na pecuária sua principal fonte de sustento _ tanto as 25 mil famílias de grandes e médios fazendeiros, com áreas acima de 500 hectares, como os 400 mil pequenos proprietários. A soja ocupa uma área de apenas um milhão de hectares (1/70 dos pastos), outras lavouras fracassaram e só agora se começa a falar em ampliar o plantio de cana para a produção de etanol.
Na mesma sexta-feira em que circulou a edição da “The Economist”, a nossa imprensa nativa abria manchetes para o levantamento feito pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), estudo encomendado pelo Banco Mundial, dando conta de que a posse é irregular e totalmente fora do controle do governo em 42 milhões de hectares _ uma área correspondente a 8,5% da Amazônia, onde cabem os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraíba e Sergipe juntos.
“Trata-se, na prática, de uma privatização gratuita da floresta. Nunca pagaram pelas terras e continuam sem pagar impostos”, disse a “O Globo” o coordenador da pesquisa, engenheiro florestal Paulo Barreto.
O processo é sempre o mesmo: o grileiro “empresta” a terra ao madeireiro para “limpar a área”, quer dizer, derrubar a floresta, e em seguida planta capim, avançando sem limites e sem qualquer controle, até porque, título de terra por aqui é coisa de ficção, quando existe.
Diante desse quadro, soam até românticas algumas iniciativas anunciadas pelo governo federal para conter a destruição da floresta depois que o mundo inteiro começou a gritar contra o desmatamento progressivo.
Primeiro, o ministro da Justiça, Tarso Genro, anunciou no começo de maio que irá preparar, junto com o ministro da Defesa, Nelson Jobim, um decreto para aumentar o número de postos militares na Amazônia.
Tudo muito bem, tudo muito bonito, mas lamento dizer que, do jeito que a situação por lá está absolutamente fora de controle, nem que o governo enviasse para a Amazônia todo o efetivo e todos os equipamentos das nossas Forças Armadas, incluindo helicópteros e aviões, a situação se reverteria.
Na quinta-feira, dia 5, quando o presidente Lula comparou a floresta a vidros de água benta em que “todo mundo acha que pode meter o dedo”, o governo criou mais três unidades de conservação ambiental na Amazônia num total de 26,5 mil quilômetros quadrados, equivalente a quase 18 vezes a cidade de São Paulo.
Tudo muito bem, tudo muito bonito, mas quem vai fiscalizar estas unidades de conservação, se as atuais tropas do Incra e do Ibama já não dão conta de cuidar das dezenas de áreas igualmente já protegidas por decreto?
“Temos que correr atrás do prejuízo, diminuir o desmatamento e preservar mais do que aquilo que se desmata”, proclamou o neo-ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, que deu um prazo de quatro anos aos fazendeiros, a partir de julho, para regularizarem seus títulos de propriedade ou terão suas terras confiscadas.
Quatro anos para regularizar os títulos? Até lá, se ainda estivermos vivos e o mundo não acabar nas fogueiras do inferno da floresta, mais quantos milhares de quilômetros terão sido desmatados e quantas outras propriedades terão sido griladas, longe dos olhos da lei e dos nossos queridos ministros?
O pior é que, desta vez, somos obrigados a reconhecer: a revista inglesa está certa ao dizer: “Na prática, é quase impossível para o governo impor sua vontade nos limites do seu império, mesmo se quisesse”.
sexta-feira, 6 de junho de 2008
Amazônia: não adianta chiar, a “Economist” tem razão
Publicado Por henrique às 11:27