Números falam mais alto do que quaisquer argumentos. Vamos a eles: 1.330 pessoas morreram pela ação da Polícia do Estado do Rio de Janeiro em 2007 (população de cerca de 14 milhões). No mesmo período todas as polícias dos Estados Unidos juntas mataram 350 pessoas (população de 300 milhões). Só nos quatro primeiros meses deste ano 502 mortes estão debitadas na conta da Polícia do Rio, a esmagadora maioria justificadas como “autos de resistência”.
Jovens negros, de favelas, entre 15 e 24 anos, este é o perfil dos mortos no Rio. A matança é tão grande que chega a afetar a relação entre a população masculina e feminina no Estado, de acordo com os dados do IBGE. Mas também é comum crianças figurarem nas estatísticas da Polícia fluminense.
Os números são de guerra, uma guerra em que só morre gente de um lado. Raramente um policial é morto em confronto. Esse número vem caindo (foram 53 casos em 2004 e 23 em 2007), assim como o número de drogas e armas apreendidas e marginais detidos. É mais comum o assassinato de policiais fora de serviço ou quando estão exercendo outras funções, os chamados “bicos” para complementação salarial.
Nas ocasiões em que existe pressão da sociedade para a apuração das circunstâncias das mortes, quase sempre surgem evidências de execução das vítimas, já rendidas e desarmadas, como ficou atestado no caso das operações no morro do Alemão e adjacências no ano passado.
Política do chumbo grosso
Quando o governador Sérgio Cabral chama de “imbecis e débeis mentais” os policiais que assassinaram um menino de três anos de classe média, ele mesmo desmascara sua política de massacre policial. É dele a voz de comando afirmando em todo momento que estamos numa guerra e que a atual política de segurança vai continuar. Muitos outros meninos pobres das favelas já foram vítimas dessas operações, mas suas famílias pobres não têm apelo de mídia. Os PMs apertam o gatilho, mas quem dá ordem é Cabral, seu secretário de segurança e o comando da PM.
O perfil do policial fluminense é conhecido: despreparado porque ingressa na polícia militar apenas com a exigência de conclusão do segundo grau; destreinado porque em vez de passar o mínimo de oito meses numa academia de polícia fica em média três meses para receber o distintivo e a arma; mal remunerado porque seu salário não chega a R$ 1 mil.
A estrutura militar da PM só contribui para que essa corporação esteja cada vez mais corrompida e apartada da população. Quando são acusados de cometer crimes os PMs são julgados por uma junta militar, que via de regra os absolve. Assim, passam também a dever mais favores aos oficiais, que muitas vezes estão envolvidos numa teia de negócios de segurança privada (empresas de segurança, milícias, firmas de guinchos, etc).
Muitos oficiais, indicados por ligações com determinados políticos, fazem das tropas de seus batalhões uma verdadeira empresa, que levanta dinheiro nas ruas através da velha prática da extorsão a traficantes varejistas, motoristas, comerciantes, bicheiros, flanelinhas e tantos outros que tenham alguma dívida com a burocracia do Estado. Nessa cadeia de hierarquia o soldado fica com a menor parte, o oficial com parcela maior e o seu padrinho com a parte do leão.
Fio de continuidade
A instituição policial-militar não se justifica numa sociedade dita democrática. A PM atual herdou o que havia de pior do período da ditadura militar (1964-1985). Ela reproduz em larga escala o modus operandi da época, quando os opositores ao regime eram presos, torturados e mortos, mas suas mortes eram divulgadas como frutos de confrontos, os chamados “autos de resistência”.
Para que serve o auto de resistência? Para três fatores fundamentais: 1) Isentar a polícia pela responsabilidade de assassinato; 2) Desfazer a cena do crime e dificultar uma possível investigação, visto que os próprios policiais recolhem os “feridos” e os conduzem nas viaturas da polícia até hospitais; 3) Criar a imagem de que os policiais assassinos cumpriram com seu dever humanitário de prestar socorro aos “feridos”. Feridos aqui aparecem entre aspas, porque na verdade ou estão mortos ou sempre chegam mortos ao hospital.
Quando alguém está “encomendado” aparecem sempre armas (os chamados cabritos) e drogas encontradas com a vítima, forma de justificar a ação criminosa de grupos de extermínio que se escondem por trás das fardas.
Essas mesmas práticas são comuns nas polícias de outros estados. Naqueles em que conflitos por terra acontecem com maior intensidade é comum o latifúndio utilizar a tropa da PM como jagunçada que reprime os sem-terra. Nesses casos o “bico” preferido é servir de pistoleiro de fazendeiro.
Assassinato, tortura, intimidação, tudo isso faz parte da prática policial no País. Por outro lado nem dez por cento dos crimes comuns registrados em delegacias são apurados e elucidados pela Polícia Civil. Ou seja, as polícias como estão não servem sequer para dar conta das tarefas mais elementares que justificariam sua existência: esclarecimento de crimes comuns, investigação e desbaratamento de grupos de deliqüentes e policiamento ostensivo.
Passar a limpo
Não interessa às classes dominantes desmontar esse esquema, que está voltado para dar uma lição aos debaixo, a castigar os excluídos, a mantê-los em seu “devido lugar”. É a tradição escravocrata que segue imperando na sociedade brasileira, dividindo de forma bem evidente a Casa Grande da Senzala.
A pretensa “guerra” em que dizem estar envolvidos é apenas a repartição do bolo da venda de drogas e armas, o “arrego” combinado com traficantes varejistas e pés-de-chinelo que sequer sabem manejar as armas que compram. Quando o acerto entre policiais e traficantes vira alvo de disputa, a ordem é entrar no território dominado pelos comandos e “esculachar”. E quem mais sofre novamente são os moradores das favelas e periferias, alvos fáceis das “balas perdidas”.
Nessa guerra particular surge um novo elemento: a milícia. Formada por policiais, ex-policiais e até bombeiros, as milícias são gangues paramilitares toleradas pelo Estado como o “mal menor”, na disputa de territórios com os traficantes varejistas. Da mesma forma que o tráfico, exploram e cobram por serviços como “segurança”, gatonet, transporte alternativo e venda de gás nas comunidades.
Quando a violência policial e militar transborda das favelas e periferias para as ruas dos bairros, vitimando filhos da classe média, surgem os arautos da “paz”, com suas passeatas de camisas brancas, flores e discursos pacifistas demagógicos. Algumas ONGs e instituições organizam manifestos, mas tudo cai no esquecimento até que novos casos estampem as manchetes de jornais.
Fim da Polícia Militar
Essas instituições, assim como as Forças Armadas, não tiveram seu funcionamento questionado ou revisto ao final da ditadura militar e continuam operando completamente apartadas de qualquer prestação de contas ou de um regime transparente para a sociedade. Esquecem que são servidores públicos e que seus soldos e salários (magros) são pagos com os impostos arrecadados junto à população.
É preciso desfazer a aura que envolve as instituições policial-militares no Brasil. Não há como fazê-lo sem recuperar a história que levou ao surgimento e crescimento do aparato policial-militar na sociedade brasileira. Ou acaso esquecemos que a guarda militar (precursora da atual PM) foi criada para capturar “negro fujão”, ainda nos tempos do Brasil Império? Quem pode esquecer o papel político da Polícia Civil durante o Estado Novo? Por que motivo o patrono do Exército ainda é Duque de Caxias, que de pacificador não tinha nada? Por que até hoje a Marinha se nega a reconhecer direitos aos rebelados da Revolta das Chibatas e dos marinheiros de 1964?
Passar a limpo essa História é reconhecer que todas essas instituições precisam ser revistas e que não há justificativa para a existência de uma Polícia Militar. A PM precisa ser extinta e, em seu lugar, fundada uma nova polícia, subordinada exclusivamente ao Judiciário e eminentemente técnica. Todos os atuais policiais civis e militares envolvidos em crimes devem ser afastados e devidamente punidos, os demais reaproveitados. Novos concursos públicos devem oferecer salários e treinamento dignos, exigindo em troca uma formação universitária e dedicação exclusiva. As prioridades o sistema de policiamento podem e devem ser discutidos e avaliados em conjunto com as organizações da sociedade civil.
No caso das Forças Armadas cabe uma minuciosa apuração na tropa sobre os que tiveram envolvimento em crimes durante a Ditadura Militar, o afastamento dos envolvidos e sua punição por tribunais civis. É preciso também orientar o novo oficialato e a tropa num sentido patriótico e humanista, como uma força de defesa da Nação, que tem em seu território e seu povo os maiores valores.
segunda-feira, 14 de julho de 2008
VIOLÊNCIA POLICIAL E DITADURA MILITAR
Publicado Por henrique às 12:12