Mais uma vez a Beija-Flor de Nilópolis é a campeã do Carnaval das Escolas de Samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro. Surpresa? Nenhuma. Deu a lógica, a lógica de um desfile profissionalizado, em que vence quem “errar menos”. Nesse caso “errar” quer dizer transgredir as rígidas regras da competição.
Mais importante que criticar a Beija-Flor e seus desfiles técnicos é compreender porque chegamos a este espetáculo previsível em que se transformou o desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial.
Origens
O Carnaval carioca tem diversas raízes. As mais expressivas são as contribuições lusitana e africana. Vem do Entrudo, tradição européia e lusitana em que limões cheirosos eram atirados nos transeuntes pelas ruas durante o período do Carnaval. Mais tarde os limões foram sendo substituídos até chegar ao confete, no que se convencionou chamar de batalhas de confetes no Rio. Aqui, em especial, surgiu um personagem folclórico, um comerciante apelidado de Zé Pereira, que saia pelas ruas do Centro da Cidade batucando numa barrica.
Os carnavais do início do século XX eram comemorados pela classe média carioca com bailes de clubes e associações, como o Tenentes do Diabo e o Democráticos. As elites também tinham seus espaços nos Corsos, Ranchos e Grandes Sociedades, em carros luxuosos desfilando pela cidade.
Mais tarde, com o advento do rádio e das emissoras de massas (Rádio Nacional e outras), foram instituídos os concursos de marchinhas de Carnaval. Foram essas marchinhas – muitas das quais com sátiras sociais e políticas – que embalaram os carnavais cariocas por algumas décadas e projetaram compositores e cantores famosos da MPB nas décadas de 30, 40 e 50.
E o povão, a “negrada”, os pobres? Que espaços estavam destinados a essa parcela majoritária da população durante o Carnaval? O samba sempre foi considerado gênero musical de segunda categoria, baseado no ritmo, coisa de negro, herança de escravos iletrados e de gosto duvidoso. Há quem afirme que o samba é também um ritmo que está intimamente ligado às tradições religiosas dos afro-brasileiros. Seria uma espécie de “transe”.
A denominação “Escola de Samba”, fora o folclore que ronda sua história, foi uma forma que os sambistas, até então marginalizados, encontraram de dar respeitabilidade à sua música e às manifestações culturais dos pobres, negros e favelados. O sambista, o capoeirista o trabalhador em geral sempre foram mal vistos ao olhar elitista e preconceituoso. As manifestações culturais dessa “gentalha” eram frequentemente dissolvidas pela polícia, seus membros detidos e fichados.
Escolas de Samba
Foi no primeiro governo Vargas que as Escolas de Samba passaram a ser reconhecidas e toleradas pelo poder público como manifestação cultural. O primeiro concurso (1935) teve o apoio do Jornal do Brasil e ocorreu na Praça 11, velho local de tradição popular no Centro do Rio.
As Escolas ainda desfilavam com poucos componentes, o samba até então era puxado no gogó pelos compositores e muitos eram apenas temas com refrões, que permitiam o improviso aos desfilantes. O desfile era marcado nas palmas das mãos, com pouquíssimos instrumentos de percussão improvisados, daí a origem da colher-de-pau e da frigideira que algumas escolas preservam até hoje em suas baterias.
O concurso não só serviu para dar um ar oficial aos desfiles, como também introduziu o elemento da rivalidade e da competição. Passou-se a adotar enredos a serem cantados e descritos durante o desfile, o número de componentes aumentou e o ritmo começou a ficar mais uniforme e mais importante, dando origem às primeiras baterias.
Mas as Escolas de Samba não eram apenas instituições voltadas exclusivamente para o Carnaval. Nelas aconteciam durante todo o ano as rodas de samba, nas quais os compositores apresentavam as canções que não conseguiam gravar porque as gravadoras não lhes abriam espaços. Mais tarde surgiram também os concursos de samba-de-quadra. Nas quadras, encravadas nas favelas que davam origem às Escolas, havia toda uma vivência cultural e artística do local, com a mistura de música, ritmos, cultos religiosos e culinária de origem africana e popular.
Cartola, Nelson Cavaquinho, Mano Décio, Silas de Oliveira, Paulo da Portela e tantos outros grandes sambistas só passaram a ser conhecidos muito tempo depois, quando a classe média da Zona Sul passou a reconhecer suas composições. Figura importante para isso, diga-se de passagem, é Beth Carvalho, que largou a Bossa Nova e abraçou o samba, gravando composições de muitos desses bambas e projetando-os na mídia. Foi com ela que muitos sambistas que já estavam esquecidos retomaram a carreira.
Isso também foi possível porque no início dos anos 60 um jovem formado na Escola de Belas Artes da Universidade do Brasil, Fernando Pamplona, resolveu enveredar pelo caminho da arte carnavalesca. Pamplona foi parar no Salgueiro e se apaixonou pelo ambiente sócio-cultural e artístico que cercava a Escola de Samba.
Para os desfiles levou alguns de seus conhecimentos básicos de estética e arte, o que deu origem ao famoso slogan “Nem melhor, nem pior, apenas uma Escola diferente”. Foi dele a idéia de utilizar adereços de mão, de fazer dos carros alegóricos elementos importantes para a descrição de um enredo. Mas Pamplona sempre foi um sujeito simples, que gostava de conhecer as tradições e origens dos elementos que o cercavam. Pesquisava, conversava com as pessoas na comunidade, procurava entender o que se passava.
Seu trabalho despertou a curiosidade de outras Escolas e de colegas que acabaram sendo convidados para integrá-las. Daí surgiu Arlindo Rodrigues, Renato Lage, Joãozinho Trinta, Rosa Magalhães, Max Nunes, etc. Até os anos 70 o carnavalesco trabalhava em função do que a Escola de Samba determinava. O enredo era decidido pela direção da Escola, algumas consultando as figuras mais tradicionais de suas agremiações. Ao carnavalesco era reservado o papel de sugerir temas, desenvolver o enredo, desenhar fantasias e alegorias, coordenar costureiras, ferreiros e marceneiros nos barracões.
O Sambódromo e a TV Globo
Até então os desfiles só eram transmitidos pelas emissoras de rádio. A partir dos anos 80, com a construção do Sambódromo e a entrada da TV Globo, cresceu de importância o aspecto plástico dos desfiles. Alegorias, Adereços e Fantasia que tinham peso menor entre os quesitos dos concursos de Escolas de Samba, passaram a ter o mesmo valor que Enredo, Samba-Enredo, Harmonia, Bateria e Mestre-Sala/Porta Bandeira. Até a famigerada Comissão de Frente obteve o status de quesito com o mesmo peso no julgamento que os demais.
A classe média, até então restrita às arquibancadas, desceu e tomou conta da avenida. Muitos batem no peito que são de tal ou qual agremiação, sem saber ao certo o samba ou sequer em que lugar elas nasceram. As fantasias, cada vez mais caras, passaram a ser parte de um pacote turístico e vendidas a estrangeiros, que nada têm a ver com as escolas. Criou-se uma verdadeira indústria do Carnaval, com barracões funcionando em ritmo empresarial ao menos seis meses ao ano.
É a partir daí que a figura do Carnavalesco assume a proporção de semi-deus nas Escolas de Samba. As antigas quadras, nas favelas e imediações, são abandonadas e novas quadras são erguidas no asfalto para atrair a freqüência da classe média e de políticos e personalidades. Os carnavalescos são contratados a peso de ouro pelas Escolas, que passam a perseguir uma estética requintada, mais ao gosto dos salões que dos cordões. As alegorias passam a ter tamanhos cada vez maiores em comprimento, largura e, principalmente, em altura, com a verticalização dos desfiles.
Os carnavalescos deixam de ser parte da equipe de Carnaval para se tornarem as figuras de maior importância das agremiações, passando inclusive a ser porta-vozes da Escola, no lugar de seus presidentes. São eles os convidados a dar entrevistas e a explicar os complicados enredos que pretendem desenvolver. As fantasias deixam de ser um aspecto a mais do desfile, tornando-se um martírio para os componentes, com resplendores, penas e muito peso.
A exclusividade da transmissão do desfile deu à Rede Globo um trunfo duplo em relação ao espetáculo: coloca as Escolas sob as rédeas da emissora e gera um lucro estrondoso na venda de espaços de publicidade em sua programação e das imagens para mais de 100 países. Não por acaso esse contrato é mantido a sete chaves, o que faz com que a emissora não sinta qualquer constrangimento em ver os “patronos” das Escolas, bicheiros e contraventores de toda ordem, durante os desfiles e na apuração.
A promoção de atores, atrizes e modelos nos desfiles certamente estão incluídas no pacote de transmissão global. Chega a ser um escândalo o espaço dedicado nas transmissões a essas figuras patéticas em detrimento do tempo de aparição de ritmistas, passistas e figuras de maior expressão do samba.
Diga-se de passagem, que a cobertura dos desfiles por outros veículos de comunicação (jornais e revistas, principalmente), via de regra escorrega nesta mesma superficialidade. Pouco é o espaço dedicado à crítica dos desfiles e muito para fotos de rainhas e madrinhas de bateria.
No entanto, a Globo procura manter certo padrão no “negócio”. Os acontecimentos que revelam o envolvimento direto do tráfico varejista de drogas com a Mangueira no final do ano passado conturbaram o ambiente e por certo tiveram influência nas notas exageradamente baixas que a Escola obteve no concurso de 2008. A Globo não aceita negociar diretamente com o tráfico varejista, comandado por pés rapados. Sua intervenção no caso é nitidamente no sentido de mudar os interlocutores da Mangueira.
A grandiosidade do espetáculo engoliu os sambistas, compositores, velhas-guardas, passistas, baianas e simples componentes das antigas Escolas de Samba. Nem mesmo as cores das Escolas são respeitadas. A única parte que ainda não foi alterada ou substituída em qualidade foi a bateria, até porque sua alma não pode ser comercializada. Os ritmistas são formados com o samba nas veias, que transmitem para os instrumentos. Mas poderemos chegar a um tempo em que DJs vão mixar o som das baterias, sem a necessidade da presença dos ritmistas nos desfiles.
Super Escolas de Samba S.A., uma definição brilhante do samba campeão do Império Serrano de 1982, é o que vemos passar pela Marquês de Sapucaí de uns vinte carnavais para cá. Por isso, as agremiações que não se adaptarem a esse “profissionalismo” da Beija-Flor serão tragadas pelo tempo. Algumas ensaiam essa tentativa de modernização empresarial, mas se ressentem de uma ingenuidade que só pode ser atribuída à paixão que ainda despertam em seus componentes.
Os bicheiros/bingueiros de hoje nada têm a ver com a folclórica figura de Natal, que brigava na rua pela Portela e empenhava grande parte de seus ganhos na Escola. Os “patronos” não mudaram, simplesmente passaram o Carnaval para as mãos de prepostos e continuam a fazer das agremiações uma forma de lavar dinheiro sujo. No caso da Beija-Flor uma Comissão de Carnaval profissional toma coordena tudo, com um sistema empresarial. Ora, se o desfile é para profissionais, nada melhor que um sistema profissional de gerenciamento para tocar o “negócio”.
O espetáculo proporcionado pelas Escolas de Samba do Grupo Especial na Passarela do Samba acaba por ser reproduzido em menor escala pelas agremiações dos grupos de acesso. Muitas delas são tradicionalíssimas (Em Cima da Hora, Unidos de Lucas, União de Jacarepaguá, etc.) e foram obrigadas a deixar de lado o que tinham de melhor para se adaptar ao esquemão de alegorias, fantasias e comissões de frente. Atravessam hoje o auge de uma crise que parece não ter fim, condenadas à morte. Ocorre que por não terem estrutura para tal acabam apresentando espetáculos caricatos, cópias de péssima qualidade das grandes Escolas.
Alguns blocos tradicionais que enveredaram por este mesmo caminho e se transformaram em Escolas, como os Canários das Laranjeiras e o Flor da Mina do Andaraí, não conseguiram se firmar e estão em franca decadência.
Por que os blocos de rua nasceram e cresceram tanto?
O esquemão das grandes Escolas de Samba e a falta de empenho do poder público em apoiar os blocos tradicionais, como Cacique de Ramos, Bafo da Onça e outros, contribuíram decisivamente para o enfraquecimento e declínio do Carnaval de rua do Rio nos anos 80. A isso se somou, neste mesmo período, uma onda de esvaziamento da cidade, com a saída do Carioca para outros municípios, fazendo do Carnaval uma extensão das férias.
Na contramão do “espetáculo” da Sapucaí estão os blocos de rua, que surgiram a partir do início da década de 90. Em geral esses blocos brotaram de reuniões de grupos de amigos com espírito carnavalesco, que sentiram a necessidade de promover algo que lhes permitisse pular Carnaval de forma espontânea e descontraída.
Carmelitas, Escravos da Mauá, Suvaco de Cristo, Simpatia é Quase Amor, Barbas, Meu Bem eu Volto Já, etc, passaram a atrair a atenção daquele folião que queria brincar o Carnaval sem compromisso com enredos, alas e desfiles uniformes, somente pela necessidade de extravasar sua alegria. O interessante desses blocos é que eles surgem em bairros de classe média, na Zona Sul da cidade, mas são pautados pelo ritmo do samba. Ou seja, o samba continua a ser a marca mais forte do Carnaval.
Os sambas desses blocos retomam a velha irreverência carioca, com a sátira e a crítica política em suas letras. Passados mais de 15 anos de sua existência os blocos de rua deram força a outras manifestações que andavam em decadência, como o velho Cordão da Bola Preta, que desfila pelo Centro, e a Banda de Ipanema, que surgiu no final dos anos sessenta.
Grupos carnavalescos, como o Cordão do Boitatá e Rio Maracatu, apresentam outros ritmos e obtiveram igual sucesso nos últimos carnavais, arrastando milhares de pessoas por onde passam. Outros preferem resgatar marchinhas e obtêm igual sucesso. Nos últimos anos o Carnaval de rua trouxe de volta, inclusive, as fantasias, que andavam esquecidas.
Novos blocos surgiram (Vem ni mim que eu sou Facinha, Que Merda é Essa, etc) e surgem a cada ano e já existe uma coordenação informal desses blocos, a Liga Sebastiana. Seu maior problema hoje é enfrentar o gigantismo dos desfiles sem a infra-estrutura necessária e com os riscos que isso acarreta.
A revitalização do Carnaval de rua no Rio é uma realidade. Tanto é assim que este ano uma fabricante de cerveja não só patrocinou blocos como associou sua marca com a apresentação de propaganda desses blocos na TV. Isso indica que este fenômeno já demonstra peso e força social suficiente para obter a atenção da mídia.
E o futuro?
Muitas podem ser as conclusões a chegar a partir de uma análise do que vem ocorrendo com o Carnaval do Rio. A elitização ainda maior e o esgotamento do espetáculo passivo e midiático da Sapucaí daqui a alguns anos é uma possibilidade, caso não haja alterações importantes em sua lógica e apresentação.
Outra seria o descolamento das Super Escolas de Samba S.A. das demais agremiações, gerando dois espetáculos distintos e estanques, o que de certa maneira já ocorre com os desfiles dos grupos de acesso C, D e E, que desfilam na Intendente Magalhães.
Mesmo os novos blocos poderão passar por crises, visto que seu gigantismo começa a incomodar aos seus próprios fundadores, com o receio de problemas e tragédias. Por outro lado sua independência em relação ao poder público e aos patrocinadores e a mídia é algo que pode não durar, podendo surgir uma espécie de passarela dos blocos (“Blocódromo”?), ao estilo Salvador, com a venda de abadás ou camisetas estilizadas.
Há muitas variantes possíveis para o Carnaval do Rio, mas o mais interessante é que o espírito carnavalesco de festa, confraternização, alegria, espontaneidade presentes na alma do carioca não morreu. As tentativas de enquadrar esse sentimento de liberdade, esse espírito carnavalesco, de tirar proveito do Carnaval carioca enquanto fonte para grandes negócios, esbarra na rebeldia do simples folião das ruas, que voltou a se fantasiar, a brincar o Carnaval como quer, sem cordas e sem aceitar fórmulas pré-concebidas.
Não se deve confundir evolução e renovação com descaracterização e apropriação das manifestações da cultura popular. Em hipótese alguma o problema da perda de identidade das grandes Escolas de Samba se deu pela transmissão da TV, pela construção do Sambódromo ou pela criação da Cidade do Samba. Esses deveriam e poderiam ser elementos para a projeção e melhoria dos desfiles, mas nas mãos de grupos econômicos e da própria LIESA se transformaram em instrumentos para aferir lucros e impor padrões estéticos que nada tem a ver com o samba e as Escolas de Samba.
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* Texto de Henrique Acker (jornalista e radialista)
Fevereiro 2008